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.:: Como se faz um violino? PDF Versão para impressão Enviar por E-mail
Parte I - A Vida de um Luthier - Entrevista a Christian Bayon por Helena Miranda
Christian Bayon A palavra luthier provém da palavra luth, que em francês quer dizer alaúde. Por sua vez, a palavra luth, segundo alguns investigadores, teve origem, via Itália, na palavra persa rud, que quer dizer corda e que serviria para designar os instrumentos de corda. Por generalização, designam-se por luthiers os artesãos de instrumentos musicais. No entanto, se quisermos utilizar o termo com exactidão, um luthier é um construtor de cordofones friccionados com caixa de ressonância (como é o caso dos violinos, dos contrabaixos e dos violoncelos).

Christian Bayon é um luthier francês que trabalha em Lisboa desde os anos 80. Conhece bem a colecção do Museu da Música, até porque alguns dos cordofones que a compõem já passaram pela oficina que dirige, situada em Campo de Ourique. Fomos visitá-lo para uma conversa sobre a sua arte:

Christian, como começou a interessar-se por violinos?
O meu percurso não  é muito normal. Comecei como autodidacta e durante três anos trabalhei só a partir de livros. Construí 10 violinos e ganhei, em 1976, um prémio chamado «Bourse de la Vocation». Foi aí que conheci o Etienne Vatelot que era, nessa altura, o mais importante luthier vivo do mundo, e Jean Schmitt, outro dos grandes mestres. Posteriormente, como assistente de um e do outro, aprendi a minha arte. 

Mas porque começou a ser autodidacta?
Completamente por acaso. Eu tocava guitarra e queria fazer guitarras, mas só encontrei livros sobre construção de violinos. Entretanto disseram-me que o violino era o instrumento mais difícil de se fazer e pensei: se eu for capaz de construir um violino serei capaz de construir uma guitarra. Entretanto, quando comecei, apaixonei-me tanto que além de ter desistido da ideia de fazer guitarras, também desisti da ideia de tocá-las, para me dedicar completamente à concepção dos violinos. Nessa altura foi muito claro para mim que era isso que eu queria fazer da minha vida, embora não soubesse se era possível, porque com o percurso que tinha, sem ter feito escola, ninguém queria saber de mim. Já era considerado velho demais, porque tinha 21 anos e a aprendizagem começava-se aos 16. Ora, com 16 eu nem sabia o que era um luthier (risos). 

Portanto, a escolha de ser autodidacta não foi uma escolha...
Foi mais uma obrigação, porque ninguém me queria ensinar. Mas depois de ganhar o prémio, aprendi com os melhores mestres da altura: o Jean Schmitt era especialista em restauros e fazia alguns que ninguém queria fazer, era o luthier dos casos desesperados. O Etienne Vatelot era o luthier de Rostropovich, Isaac Stern, Stephane Grappelli… tinha todos os grandes músicos como clientes. Foi para mim um tempo fabuloso. Não só contactei com os instrumentos mais importantes do mundo, como também com os músicos mais famosos. Nunca tinha imaginado que pudesse trabalhar com gente de tamanha excepção e instrumentos assim, sobretudo pela maneira como tinha começado, que era má.
Ao contrário de muitas pessoas que, na vida, têm de desistir dos sonhos, eu vivi uma vida que nem tinha sonhado. Comigo foi ao contrário. 

E como se emancipou dos seus mestres?
Em 84 decidi abrir uma oficina por conta própria e escolhi uma cidade pequena na Bretanha: Morlaix, de 23 mil habitantes. A seguir abri um segundo atelier em Rennes, que já é uma cidade importante, a mais importante dessa região. Na altura já era especialista no restauro, tinha aprendido isso com os meus mestres, então era isso que fazia. O problema é que queria restaurar instrumentos importantes. No atelier do Etienne Vatelot tinha trabalhado com stradivarius e guarneris e agora, por conta própria, via que já não era a mesma coisa. É que numa cidade de província (mesmo em Rennes), não há nenhum instrumento deste tipo e os eventuais solistas de passagem não vinham ter comigo, porque era completamente desconhecido.
Assim que percebi isto, surgiu-me a ideia de mudar de país e ir para um sítio onde houvesse uma vida musical importante, mas ainda sem muitos luthiers qualificados. Pensei em várias possibilidades e em 89, enquanto folheava a revista O Mundo da Música, li uns anúncios para audições numa nova orquestra, criada nesse ano, a Régie Sinfónica do Porto. Isso deu-me a ideia de vir para Portugal, e foi uma ideia óptima.
Antes de mim, havia apenas dois luthiers em Lisboa, mas nenhum deles era grande especialista. Os músicos tinham que deslocar-se a Londres e a Paris e alguns a Espinho, ao Capela (cuja especialidade é mais a construção). Havia realmente a falta de uma pessoa qualificada no restauro e eu precisava de continuar a trabalhar com instrumentos interessantes, portanto acabou por ser a escolha perfeita.

Abriu um atelier só de restauro?
Exactamente. Até  há sete anos só fazia isso, e restaurei muitos instrumentos graças à Fundação Calouste Gulbenkian. Quando um solista da Orquestra Gulbenkian tinha um problema vinha aqui. Veio cá o Maxim Vengerov, o Augustin Dumay, o Shlomo Mintz, o Truls Mork, o Lynn Harrel… tive assim a possibilidade de voltar a contactar com os instrumentos com que sonhava.
Em 2002 e 2003, mais uma vez por casualidade (um concurso de circunstância), resolvi deixar de restaurar para só me dedicar à construção de instrumentos. Comecei a ter muitas encomendas…

Mas durante os anos anteriores tinha parado completamente de construir?
Também fiz instrumentos, mas fiz muito poucos. Era quase um passatempo fora da minha vida profissional. Só fazia porque gostava e também para não parar, mas nunca me vi como um grande construtor. Pensava que era um restaurador, mais do que um construtor e fazia os meus violinos por gosto. Acreditava que não reunia as qualidades suficientes.
Em 2003 tive tantas encomendas de instrumentos que já não fazia sentido. Apercebi-me que tinha 10 encomendas e fazia um instrumento de 3 em 3 anos. Ou deixava de restaurar ou deixava de aceitar encomendas. Também não sou uma pessoa que fique muito à vontade a fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Tenho de me concentrar só numa. Tenho colegas muito bons que são capazes de fazer muitas coisas diferentes. Eu não sou.

Só  faz um instrumento de cada vez.
Faço um instrumento de cada vez, exactamente.
Bem, como ia dizendo, nessa altura resolvi fazer só instrumentos novos, cópias de antigos, e é o que faço de há 7 anos para cá. Adorei o restauro, é muito emocionante, mas devo dizer que esta é uma vida nova para mim, muito diferente da anterior. Os meus violinos são tocados por grandes solistas e viajo bastante (5 a 6 vezes por ano), para ver concertos importantes. Não os vou ver todos, é impossível, mas vou ver os que mais me agradam.

Há músicos no estrangeiro a encomendarem-lhe violinos?
Sim, por exemplo o Michal Kanka, violoncelista do Quarteto Prazak, que tocou há pouco tempo em Bruxelas um concerto de Dvorak com a Filarmonica Checa, o Pavel Gomziakov, violoncelista russo, que gravou para a Deutsche Gramophon a Sonata de Chopin com a Maria João Pires, ou o Tedi Papavrami, grande solista albanès, professor do Conservatório de Genebra.

Qual foi o instrumento que gostou mais de fazer?
Violino, viola ou violoncelo?

De sempre.
Não posso falar assim, mas apenas porque encaro a construção como uma fase transitória. Só começa a ser interessante quando o violino está acabado e já nas mãos do músico. Os que gosto mais são aqueles que estão nas mãos dos músicos que eu gosto mais. Ouvir o Papavrami a tocar no meu violino é realmente fabuloso.
Os instrumentos que eu gosto mais acabam por ser aqueles que estão nas mãos das pessoas com quem combinam melhor. Sinto que alguns instrumentos têm uma química boa com o seu músico e isso é o que me dá mais prazer agora. Mas quando os faço ainda não sei nada disso.

São todos encomendas?
Sim, são todos encomendas.

Então cada instrumento que constrói é feito propositadamente para determinado músico?
Antigamente fazia assim. Agora mudei. Faço um violino e quando está acabado penso: Com quem combinaria bem, este violino?
Acho que há mais facilidade em chegar a esse acordo depois de acabado o instrumento. São todos diferentes. Por exemplo, ainda não sei para quem vai ser este violino que estou a construir agora. Mudei as cordas ontem. Daqui a duas, três semanas, vou decidir. Já tenho uma ideia, mas ainda não tenho certeza. Acho mais fácil fazer assim. Mas sim, durante muitos anos fiz instrumentos a pensar numa pessoa específica. Normalmente conheço muito bem os meus clientes. Vi-os muitas vezes em concertos, ouvi muitos discos, e costumo saber o que cada músico quer, especificamente.

Tinha formação musical ou apurou o ouvido?
Quando fazia restauros ia a cem concertos ou mais, por ano. Ia imenso. Nenhum músico vai a cem concertos por ano. Apesar de eu não ser um grande músico e não tocar nada de especial, tenho uma grande cultura melómana, de conhecer as salas, ver instrumentos e, principalmente, ouvir concertos. 

As ferramentas que utiliza são muito específicas?
Bem, as plainas grandes são iguais às de carpintaria, assim como os formões, mas as plainas pequenas são específicas de luthiers. As goivas utilizam-se também na escultura, as limas são iguais à dos mecânicos. Depois temos as ferramentas específicas de cada oficina, que são os próprios que inventam e adaptam: por exemplo, as facas, ou a ponta para colocar a alma nos instrumentos. 

Por ano, quantos instrumentos constrói?
Uns cinco, mas sou especialmente lento. É possível fazerem-se mais, e até se pode optimizar o trabalho com isso. Só que eu já tentei e não gostei. Tenho de me dedicar a um de cada vez.  

Não lhe custa livrar-se dos instrumentos, quando os acaba?
Não, pelo contrário. Depois de entregar um violino ao cliente é que começa a sua verdadeira história.